IMPARCIALIDADE DO JULGADOR E PRODUÇÃO DE PROVAS – JULGAMENTO DE RHC – INFORMATIVO STF Nº. 988:

 

Em conclusão de julgamento e ante o empate na votação, a Segunda Turma deu parcial provimento a agravo regimental em recurso ordinário em habeas corpus, para declarar a nulidade da sentença condenatória proferida nos autos de processo penal, por violação à imparcialidade do julgador.

No ato impugnado, o ministro Edson Fachin (relator) negou seguimento ao recurso ordinário. Explicitou que o recorrente sustentava a quebra de imparcialidade do juiz condutor da ação penal, substancialmente sob a argumentação de que: (i) ao tomar diretamente o depoimento de colaboradores no momento da celebração de acordo de colaboração premiada, o magistrado teria participado da própria produção da prova na fase investigativa, exercendo, ao menos materialmente, as atribuições próprias dos órgãos de persecução. Por tais razões, estaria caracterizada hipótese de impedimento estabelecida no art. 252 do Código de Processo Penal (CPP) (1), notadamente em seu inciso II; e (ii) ao determinar ex officio a juntada aos autos de documentos utilizados para fundamentar a condenação, após a apresentação de alegações finais, o magistrado teria suprido a insuficiência probatória da acusação prevista no art. 156 do CPP (2). Este cenário, na visão da defesa, acarretaria a absolvição do acusado, ora recorrente.

Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes, que foi acompanhado pelo min. Ricardo Lewandowski.

O ministro Gilmar Mendes afirmou que este recurso trata da proteção à imparcialidade jurisdicional e de sua efetividade. Frisou ainda a importância da imparcialidade como base da jurisdição.

Reportou-se à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da inconstitucionalidade de dispositivo legal em que autorizada a possibilidade de o julgador realizar a coleta de provas que poderiam servir, mais tarde, como fundamento da sua própria decisão (ADI 1.570). De igual modo, mencionou entendimento do STF segundo o qual o princípio fundante do sistema ora analisado, a toda evidência, é o princípio acusatório, norma decorrente do due process of law e prevista de forma marcante no art. 129, I, da Constituição Federal (CF) (3), o qual exige que o processo penal seja marcado pela clara divisão entre as funções de acusar, defender e julgar (ADI 4.414).

Na sequência, informou que o modelo acusatório determina, em sua essência, a separação das funções de acusar, julgar e defender, e, assim, tem como escopo fundamental a efetivação da imparcialidade do juiz. A CF consagra o sistema acusatório no processo penal brasileiro, o que impõe a separação das funções de acusar e julgar a atores distintos na justiça criminal. Contudo, a mera separação formal não é suficiente, devendo-se vedar a usurpação das funções acusatórias pelo juiz e, também, a sua união ilegítima em detrimento da paridade de armas.

Ao versar sobre a proteção efetiva da imparcialidade do julgador, esclareceu que, no atual CPP, são reguladas causas de impedimento e suspeição. Conforme doutrina, a suspeição é causa de parcialidade do juiz, viciando o processo, caso haja sua atuação. Ela ofende, primordialmente, o princípio constitucional do juiz natural e imparcial. Pode dar-se a suspeição pelo vínculo estabelecido entre o juiz e a parte ou entre o juiz e a questão discutida no feito. Note-se que não se trata de vínculo entre o magistrado e o objeto do litígio — o que é causa de impedimento — mas de mero interesse entre o julgador e a matéria em debate. Diante disso, o STF definiu que a suspeição ocorre quando há vínculo do juiz com qualquer das partes [CPP, art. 254 (4)].

Segundo o ministro, há um conjunto muito particular de elementos nos autos que aponta para a violação à imparcialidade judicial. O simples fato de o juiz ter procedido à homologação dos referidos acordos de colaboração ou mesmo ter realizado as oitivas dos colaboradores não tem o condão configurar per se a quebra de sua imparcialidade para o julgamento do réu ao qual imputados ilícitos no âmbito dos respectivos acordos. Todavia, as circunstâncias particulares do caso demonstram que o juiz se investiu na função persecutória ainda na fase pré-processual, violando o sistema acusatório.

Não houve mera homologação de acordo de colaboração premiada para verificação de sua legalidade e voluntariedade, tampouco ocorreu mera produção de prova de ofício pelo julgador. A espécie apresenta especificidades que caracterizam manifesta ilegalidade.

Salienta-se que o acordo analisado e a sua homologação judicial ocorreram em momento anterior à promulgação da Lei 12.850/2013. Conquanto isso, a necessidade de imparcialidade judicial está consolidada na Constituição Federal e em tratados internacionais de direitos humanos há muito mais tempo.
Com a redação dada pela Lei 13.964/2019, aquele ato normativo passou a esclarecer que, após a homologação do acordo, a análise do juiz deve cingir-se ao exame da regularidade e legalidade, da voluntariedade da manifestação, da adequação dos benefícios pactuados. Inovação legislativa que apenas reforçou entendimentos jurisprudenciais pacificados pelo STF sobre os limites da atuação do julgador na fase de homologação dos acordos de colaboração premiada.

Da leitura das atas de depoimentos, o ministro depreendeu ser evidente a atuação acusatória do julgador. Ao analisar a sequência de atos, verificou a proeminência do magistrado na realização de perguntas ao interrogado, as quais fogem completamente ao controle de legalidade e voluntariedade de eventual acordo de colaboração premiada. Avaliou ter havido atuação direta do julgador em reforço à acusação.

Logo, não houve mera supervisão dos atos de produção de prova, mas o direcionamento e a contribuição do magistrado para o estabelecimento e para o fortalecimento da tese acusatória.

Ainda que essa autuação não fosse suficiente para configurar a quebra de imparcialidade do magistrado, a sua atuação alinhada com a estratégia acusatória mostrou-se evidente em outro momento processual. Consta de maneira inconteste que o juiz determinou a juntada de ofício de vários documentos aos autos, invocando os artigos 234 e 502 do CPP (5), após o oferecimento das alegações finais pelas partes.

Ao final da instrução, o julgador ordenou a juntada de centenas de folhas, em quatro volumes de documentos, diretamente relacionados com os fatos criminosos imputados aos réus, sem qualquer pedido do órgão acusador. Depois, ao sentenciar, o magistrado utilizou expressamente tais elementos para fundamentar a condenação. Ou seja, o juiz produziu, sem pedido das partes, a prova para justificar a condenação que já era por ele almejada, aparentemente.
Mesmo que se pudesse invocar, em tese, a possibilidade jurídica da produção de prova de ofício pelo julgador com base no art. 156 do CPP, na situação dos autos, sequer é possível falar verdadeiramente em produção probatória. Os documentos juntados não poderiam ter sido utilizados para a formação do juízo de autoria e materialidade das imputações, uma vez encerrada a instrução processual.

Dessa maneira, imperiosa se faz a incidência do art. 157 do CPP (6), o qual preleciona o desentranhamento de provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. A ordenação ex officio do ato judicial impugnado, quando associada às características particulares do caso concreto, confirmam a grave violação do princípio acusatório.

Por fim, o ministro ponderou ser evidente a quebra da imparcialidade do juízo, o que finda por macular os atos decisórios proferidos, porquanto ausente o elemento base de legitimidade da jurisdição em um Estado Democrático de Direito.

Vencidos os ministros Edson Fachin (relator) e Cármen Lúcia, que negaram provimento ao agravo regimental.

O ministro Edson Fachin afirmou que as decisões objeto do recurso estão em linha com o entendimento do STF. De igual modo, citou orientação do STF no sentido de que as causas de impedimento do julgador, listadas no art. 252 do CPP, são taxativas e jungidas a fatos diretamente relacionados à ação penal em que arguida a imparcialidade (AImp 4).

Enfatizou que, a rigor, não se trata de alegação de exercício de função alheia à investidura jurisdicional, mas de eventual incorreção do exercício da atividade judicial, aspecto que, na espécie, não se insere na espacialidade da configuração dos impedimentos taxativamente previstos na legislação processual penal.

Avaliou que, durante as audiências indicadas pela defesa, não se detecta, objetivamente, exteriorização de juízo de valor acerca dos fatos ou das questões de direito, emergentes na fase preliminar, que impeça o juiz oficiante de atuar com imparcialidade no curso da ação penal.

Registrou que a oitiva dos colaboradores em juízo trata de tarefa ínsita à própria homologação do acordo, atualmente com expressa previsão na Lei 12.850/2013. Ademais, a participação da autoridade judicial na homologação do acordo de colaboração premiada não possui identidade com a hipótese de impedimento prevista aos casos de atuação prévia no processo como membro do Ministério Público ou autoridade policial. Ao contrário, a atividade homologatória da avença mostra-se necessária a fim de verificar a sua regularidade, legalidade e voluntariedade.

Quanto à juntada de ofício, o relator ponderou não acarretar mácula à imparcialidade judicial, não configurando, isoladamente, hipótese de afastamento do magistrado. Isso, mesmo que se questionem, em tese, os limites dos poderes instrutórios do magistrado.

Em sua decisão, ora agravada, colheu inclusive manifestação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, no curso de processo penal, admite-se que o juiz, de modo subsidiário, possa — com respeito ao contraditório e à garantia de motivação das decisões judiciais — determinar a produção de provas que entender pertinentes e razoáveis, a fim de dirimir dúvidas sobre pontos relevantes, seja por força do princípio da busca da verdade, seja pela adoção do sistema do livre convencimento motivado.

(1) CPP: “Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito; II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha; III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão; IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.”

(2) CPP: “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.” (com redação dada e inclusão de texto pela Lei 11.690/2008)

(3) CF: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;”

(4) CPP: “Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; II – se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia; III – se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes; IV – se tiver aconselhado qualquer das partes; V – se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes; Vl – se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.”

(5) CPP: “Art. 234. Se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível. (...) Art. 502. Findos aqueles prazos, serão os autos imediatamente conclusos, para sentença, ao juiz, que, dentro em cinco dias, poderá ordenar diligências para sanar qualquer nulidade ou suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade. (Revogado pela Lei 11.719/2008) Parágrafo único. O juiz poderá determinar que se proceda, novamente, a interrogatório do réu ou a inquirição de testemunhas e do ofendido, se não houver presidido a esses atos na instrução criminal. (Revogado pela Lei 11.719/2008)”

(6) CPP: “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.”

RHC 144615 AgR/PR, rel. orig. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25.8.2020. (RHC-144615)

 

Fonte: STF.

 

Rodrigo Rosa Advocacia Criminal

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